Daniele Toledo passou 37 dias presa, mas depois foi inocentada (Foto: Poliana Casemiro/G1)
Acusada e presa injustamente pela morte da filha de 1 ano por overdose de cocaína em 2006, Daniele Toledo vai contar em um livro o drama que passou na prisão. O caso ganhou repercussão nacional e mudou a vida da mulher, atualmente com 31 anos. "Tristeza em Pó" será lançado na primeira quinzena de junho pela editora nVersos e remonta o antes e depois das acusações, exposição e agressões sofridas nos 37 dias em que ficou presa.
A casa simples onde Daniele vive em Taubaté, no interior de São Paulo, não chama atenção. Portas e janelas trancadas escondem quem vive ali. É assim que ela se mantém reclusa, na casa da parente de um ex-noivo. Dez anos depois da prisão, ela, que evita exposição na mídia, diz que o livro "é sua primeira chance de defesa por ela mesma para o mundo".
Exame toxicológico deu negativo para cocaína na
mamadeira (Foto: Reprodução/TV Vanguarda)
O caso ocorreu em agosto de 2006, época em que a filha de Daniele, Vitória Maria Iori Camargo, sofria com convulsões constantes. Em uma das vezes que passou mal, a criança foi levada ao Pronto Socorro em Taubaté, onde os médicos suspeitaram de um pó branco na boca da bebê.
A menina teve três paradas cardiorrespiratórias e morreu. Cinco minutos depois, a mãe recebeu voz de prisão pela polícia, que constatou em um teste rápido que o pó tinha vestígios de cocaína.
"Não vivi o luto da minha filha. Ela estava morta, e mal conseguia processar isso, quanto mais aquelas acusações. Eu não conseguia dizer nada, nem me defender", afirmou Daniele ao G1.
Tortura na prisão
A dor da perda tornou-se física. Na mesma noite, Daniele foi levada para a cadeia de Pindamonhangaba. Reconhecida pelas presas como a mãe acusada de colocar cocaína na mamadeira da filha, Daniele foi torturada. Teve uma caneta introduzida no ouvido direito e foi espancanda pelas companheiras de cela. Depois, foi levada para a penitenciária feminina de Tremembé. No total, foram 37 dias na prisão.
Até hoje Daniele carrega as sequelas das agressões na cadeia. Perdeu a audição e a visão do lado direito. O espancamento formou coágulos na cabeça, que causam nela crises de convulsão. O traumatismo intracraniano dos chutes reduziu os movimentos do lado direito do corpo.
"Eu sentia o sangue quente escorrer, as partes do corpo começarem a doer e tudo ficou escuro. Ali tudo mudou", disse. No livro, ela conta em detalhes a frieza das agressões, motivadas pelo código de conduta dos presos, que não aceitam assassinos de crianças.
A situação de Daniele mudou quando os exames de Vitória ficaram prontos. Os testes provaram que o que houve foi um falso positivo, por conta das medicações que a bebê tomava para conter as crises de convulsão. Daniele foi solta, e a primeira coisa que fez foi visitar o túmulo da filha no cemitério de Tremembé.
Suspeita inicial foi que Vitoria tivesse morrido por
ter cocaína na mamadeira em Taubaté
(Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)
10 anos depois
Cercada de medicamentos e longe das pessoas. É assim que Daniele se mantém depois do que aconteceu. Ela teme os olhares julgadores de quem ainda não a inocentou e quer evitar a exposição do filho, que na época do ocorrido tinha 3 anos e hoje é um adolescente de 13.
O caso completa dez anos em agosto, mas as marcas na vida de Daniele estão longe de serem apagadas pelo tempo. Além das lesões físicas, ela sofre com depressão e síndrome do pânico.
"Eu tenho medo de aglomerações, eu não posso ir a todo lugar porque as pessoas podem me reconhecer. Elas me apontam, relembram a história. Hoje eu não posso participar da vida escolar do meu filho, não posso trabalhar porque assim que descobrem sou dispensada. Minha vida terminou ali, naquela sala de hospital", diz.
Os exames descobriram que não foi a mãe quem matou a filha, mas o que causou a morte ainda é um mistério. Os resultados apenas provaram que o que havia na mamadeira e na boca da criança não era cocaína, mas sim resquícios do medicamento que a criança tomava.
Vejo o meu caso como um retrato da injustiça brasileira, mas não foi o primeiro ou o último. Eu conto minha história na tentativa de evitar que mais vidas sejam encerradas. Ensinar que é preciso análise, apuração e ouvir antes de condenar alguém"
Daniele Toledo
"Ficam várias perguntas e nada vai recuperar o que eu passei. Vejo o meu caso como um retrato da injustiça brasileira, mas não foi o primeiro ou o último. Eu conto minha história na tentativa de evitar que mais vidas sejam encerradas. Ensinar que é preciso análise, apuração e ouvir antes de condenar alguém", disse.
Por ter sido presa e depois inocentada, Daniele processa a Secretaria da Segurança Pública (SSP) pedindo indenização. O caso, no entanto, tramita em segredo de justiça.
Estupro
No livro, Daniele afirma que foi perseguida depois de uma denúncia que fez contra um aluno de medicina que atuava no Hospital Universitário, onde a filha havia sido atendida dias antes com convulsões.
Ela acusa um médico de tê-la estuprado em uma das madrugadas que passava com Vitória no hospital. Este caso chegou a ser investigado, mas foi arquivado por falta de provas.
Após uma das crises, Vitória ficou internada no Hospital Universitário vários dias em coma. Daniele afirma que, em uma das noites, um estudante de medicina a sedou e estuprou. Sob chantagem de que a filha precisava de tratamento, ele disse que Daniele não deveria contar a ninguém o ocorrido.
Onze dias depois do registro do boletim de ocorrência contra os envolvidos, ela foi presa acusada de matar a filha.
Não vivi o luto da minha filha. Ela estava morta, e mal conseguia processar isso, quanto mais aquelas acusações"
Daniele Toledo
"Eu acredito que ter sido estuprada me transformou na assassina da minha filha. Apesar disso, acho que fiz bem em denunciar. A sociedade é machista, mas talvez se isso tivesse acontecido hoje, a minha história seria diferente. As pessoas amadureceram a ideia do abuso e a importância de falar sobre isso", afirmou.
Outro lado
Em nota sobre o caso, a Secretaria de Segurança Pública informou que a prisão de Daniele foi solicitada pela Polícia Civil à Justiça a partir da análise de provas disponíveis naquele momento. Após o Poder Judiciário decretar a prisão preventiva, foram apresentadas novas provas materiais, que motivaram a retificação do processo pela Polícia Civil e o pedido de soltura. O delegado responsável pelo caso morreu em 2013.
A pasta informou ainda que o processo que corria contra o diretor da cadeia e os três carcereiros de plantão no dia em que Daniele foi espancada foi arquivado, pois não foram constatadas provas que os incriminassem.
O defensor público Wagner Girón, responsável pela defesa de Daniele, não foi localizado para comentar o assunto até a publicação desta reportagem. A Fundação Universitária de Taubaté (Fust), responsável pelo Hospital Universitário, não respondeu aos questionamentos do G1 até a publicação desta reportagem.
Daniele Toledo mostra uma foto de Vitória (Foto: Poliana Casemiro/G1)
Poliana Casemiro
Do G1 Vale do Paraíba e Região